terça-feira, 26 de outubro de 2010

Fungada

              Cada inspiração é um flash. Uma lembrança. Uma alfinetada no coração. Cada vez que inspiro nos vejo na cama, me vejo em teus pés, sinto como se nossas pernas ainda estivessem entrelaçadas. A expiração dói. Sai rasgando esse delírio e deixando um rastro de sangue e ódio. Age como uma maldita diabetes que não deixa essa ferida aberta e purulenta na minha alma cicatrizar. Dela só sai pus. Pus e lamentos.
                O momento entre uma expiração e uma inspiração é breve, e nesse momento não te vejo, pois você está num vazio de um passado. Mas depois de uma expiração vem uma inspiração, e aqui está você comigo novamente, na minha cabeça. E eu sinto ódio. De você e de mim mesmo. Odeio ter me iludido, ter sido bobo e ainda me amolecer desse jeito quando inspiro.
                E então eu peço socorro. Imploro para que minha sinusite congestione meu nariz novamente e me impeça de sentir o cheiro desse meu perfume novo, que por acaso de um destino maldoso é igual ao seu. 

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

O que está por trás

    Havia certa vez um pobre garotinho que sonhava em ser invisível. Tentava de tudo, o coitado, mas não conseguia. Fazia receitas, magias fantásticas, pesquisava na internet, e nada. Então que surge seu irmão mais velho e diz que o único meio de se tornar invisível era se olhar através de um espelho invertido, mas que tomasse cuidado, pois era muito perigoso. O garoto, então, sem hesitar, pegou um espelho e virou-o de costas. E lá estava tudo cinza, não havia reflexo dele algum. Estava invisível, finalmente? Resolveu testar.
                O garoto foi até o seu irmão e tentou chamar sua atenção, sem obtê-la. Estava, de fato, invisível. Estava tão feliz que resolveu correr às ruas e tocar o caos na população, explorando seus mais novos misteriosos poderes de invisibilidade. Mas, ora, assim que saiu em disparada pelas ruas, esbarrou numa mulher, que gritou: ei, cuidado, moleque.
             Desconsolado, o pobre garoto sentiu pela primeira vez uma desilusão. Estava acabado, tudo por água abaixo. Mas as crianças, sagazes como são, sempre espertas e otimistas como só elas sabem ser, sempre têm uma solução. O garoto então supôs que a mulher com quem ele esbarrara na verdade era uma feiticeira e que somente ela podia vê-lo. Só que ele não tinha certeza disso, ainda havia aquele resquício de dúvida.
                Estava bastante concentrado em seus pensamentos, quando, ao atravessar inadvertidamente a rua, foi atropelado por um carro. “Estou invisível”, pensou o garotinho num sorriso, pouco antes de morrer. “Ele não me viu”.
  Ao menos morreu feliz, segundos antes das pessoas chegarem para socorrê-lo. Se as tivesse visto tentando reanimá-lo, teria entendido que a felicidade não era mais que uma infantil ilusão.

sábado, 16 de outubro de 2010

All he you

             Ficar em silêncio e deixar a hora andar, o vento soprar e as formas se metamorfosearem. Nesse recanto de silêncio deixo o som passar sem me notar. Não há vibração, nem as cores se distinguem. Recolho-me nesta bolha não por pretensão, mas pela necessidade idiossincrática de descanso desse mundo frenético. Nesse meu hiperespaço você não me atinge. Aqui, você não existe, nunca existiu, nem existirá. Não há você, apenas eu.
                Em minha volta só há sorrisos bobos, palavras desperdiçadas e atos fúteis. Não entendo bem essa agitação, esses gritos todos e o desespero por atenção. Não quero atenção. O que quero é um jeito de ver sem ser olhado. Beijar sem esperar resposta. Amar sem precisar de retribuição.
                O que quero é prazer sexual, sensual, amoroso, espiritual. Não quero discussões e imaturidades. Nem falsa maturidade. Espero que ninguém importune essa paz.  Dispenso os desnecessários, agora que já conheço esses muito bem. Reservo o espaço para aqueles que, como eu, prezam pela valorização.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Das crianças

Então se chega ao dia em que queremos voltar ao passado. O dia em que nos arrependemos de ter crescido. Lembramos então daqueles tempos de outrora quando ansiávamos por crescer e conhecer um mundo que nos parecia tão empolgante. E aqui estamos. Percebemos, finalmente, que fomos iludidos. Não nos falaram como seriam realmente nossas responsabilidades, o quanto sofreríamos e que nosso tempo iria parecer que diminui a cada dia. Queremos voltar aos velhos passados, buscar respostas não respondidas e dessa fez envelhecer preparados. Mas é só um sonho. Na verdade ninguém quer mesmo passar por tudo novamente.
                Mas há essa saudade, nostalgia, fascinação pelos pequenos, miniaturinhas de nós mesmos. Gordinhos, sorridentes e de uma energia que parece nunca acabar. Invejamos. Invejamos aquela alegria incompreensível, o desejo de brincar, a vontade de viver. No fundo, todos nós queremos resgatar um pouco a criança que um dia existiu em nós, apesar de sabermos que essa criança não mais existe, já cresceu, já apodreceu. Foi corrompida. Molestada por nós mesmos.
                Bons tempos aqueles. Lamentamos por não existir mais dias assim. E, a cada geração nova, vemos que o mundo está mudado. Que nem mais as crianças são feitas como antigamente. Sim, são produtos. Lamentamos e desejamos que tudo voltasse a ser como antes.
                Singelo. Inocente. Que nem as crianças.


E feliz Dia das Crianças. Pra você, que já não é mais uma.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Mistério

    Fico olhando e me perguntando todas as implicações. O que aconteceria? Como seria? Pergunto-me qual seria a sensação – a textura, a temperatura. Ou o gosto, quem sabe. Duvido se algo mais poderia haver. Imagino o que mais há aí dentro. O que se passa.
                Muitas vezes fico preso nesse meu enigma particular, desviando minha atenção, tentando, creio que em vão, responder pelo menos uma pergunta. Mas cada minuto que passa é uma questão a mais. Uma incerteza.
                Procuro em cada letra, célula, pêlo, procuro pistas de algo que me dê alguma esperança. E perco o fôlego.

                E fico aqui, todo sem ar, me perguntando o que você fez noite passada para dormir na aula inteira.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Agora que estou mais velho

Não os vejo mais com os mesmos olhos. Agora que estou mais velho posso apenas ficar aqui sentado e assistir impassível a esse show de aberrações. Aberrações que eu digo, não aquelas de circo, mas dessas que convivemos todos os dias. Infantilidade. Idiotice. Exibicionismo.
Quando eu não era mais velho ainda, me perdia nesse caos de sentimentalismo. Tantas coisas com as quais eu não sabia lidar. Não tinha experiência suficiente para prever certas decepções. Mas agora que já sou mais velho já posso enxergar através da velha máscara do amor.
Eu não era mais velho ainda quando tentei ser feliz. Eu não era mais velho ainda para ter estabilidade. Mas agora posso. Já sou mais velho o suficiente para estabilidade. E já estou mais velho o suficiente para não querer essa estabilidade com você.
  E quando eu percebi que já era mais velho, abri os olhos pela primeira vez.  Percebi, então, que meus olhos mais novos eram imaturos demais para perceber toda a verdade por trás das coisas. Toda a falsidade, a solidão, a desilusão.
Mas não tem problema, agora que estou mais velho não me preocupo mais com isso. Porque agora sei que as coisas são muito mais do que aqueles inúteis desejos. E qualquer um pode ver isso, depois do tanto caminhei.
Agora que estou mais velho.


Qualquer semelhança com a música Now That I'm Older de Sufjan Stevens não é mera coincidência. Mas minha singela homenagem ao gênio que tanto me inspira.