terça-feira, 31 de agosto de 2010

João e Maria

             Vá seguindo com seus passos firmes e sérios. Estou bem aqui, logo atrás de você, à espreita, te acompanhando – com os passos e com os olhos. E com o coração, quem sabe. Sigo em silêncio, mas sei que você sabe que aqui estou; você se vira, me vê, com aquele olhar rígido e impenetrável, nossos olhares apenas se encontram, por um breve momento, que, por sinal, significa até demais para mim, mas você volta para onde estava e segue a estrada. Mas estou aqui, não se esqueça. Estou aqui, bem atrás, sinto teu cheiro e vejo teus gestos, observando
Cada
Detalhe
Seu.
E é a única coisa que posso fazer, catar suas migalhas, até que um dia você decida esperar por mim e seguir o resto de sua trilha ao meu lado.
             E nossos dedos entrelaçados.

domingo, 29 de agosto de 2010

A vida em abstração ortográfica

A vida é assim corrida depressa apressada sem descanso nem pausa pra respirar sem vírgula ou pontuação não há assento de espera ou pausa para o almoço você tem que acompanhar é assim mesmo meu caro cansativa siga o rumo não perca a linha nem saia do parágrafo quando menos se espera já se passaram quatro linhas ou trintas anos ou então já é tarde demais então aproveite leia tudo direito não se atrapalhe mas cuidado não há vírgulas não se confunda preste atenção e interprete corretamente porque o tempo vai passando e então os acentos desaparecem e tudo vai ficando cada vez mais confuso e voce nao entende o motivo dsa letars embralhads ams é apeans o tepmo passando e então essa vida confusa calamitosa curta e exausta finalmente chega ao fim com seu derradeiro ponto final.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Só riso

No sorriso se vê mais do que dentes e gengivas, mas uma alegria ou uma tristeza. No sorriso vemos um dia, uma semana, uma vida. No sorriso, que nos parece tão simples, há um ato de complexidade, uma alma embutida. Por teu sorriso vemos quem tu és, teu caráter, tuas intenções. No sorriso se vêem marcas, cicatrizes, restos de um amor perdido. Ou encontrado. No sorriso encontramos resto de alface do almoço passado, ou um simples dente restaurado. Ah, um sorriso... Com ele nos escondemos, fingimos, tentamos dizer que está tudo bem. Com o sorriso conquistamos, paqueramos, seduzimos, iludimos. Com o sorriso se agradece, se desculpa, se magoa, se diz que eu te amo. Um sorriso pode ser fatal ou salvar a tua vida. O sorriso santifica e condena. O sorriso é a máquina do amor, da morte, da dor.
O sorriso, de cinismo ou prazer, do que agrada ou mascara, aquele que ri das piadas, que te dá bom dia, que te cala a boca, é só um riso.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Do tempo que se passa

               Já bebi, já roubei, já amei, já chorei, já sorri, já transei, já pus um piercing, já casei, tive filhos, me divorciei, já viajei, já fui preso, fiz tatuagens, aprendi outras línguas, já experimentei dos dois sexos – e gostei –, já menti, já fugi, já fingi, já dancei, vomitei, me droguei, já magoei, já traí, já fui traído, já fui emo, pagodeiro, baladeiro, já briguei, já gritei, já fui convertido, seduzido, iludido, minha experiência agora me convence de que já se foi tempo demais.
                Agora já estou partindo, cansado, satisfeito por ter aproveitado essa vida que me foi dada mesmo sem eu a ter pedido. Aproveitei, sim, abusei, admito, me desgastei e agora estou cansado, pensante, pensando se fiz o certo. Pensando se sofri por amor, roubei por emoção, magoei por bobagem, transei por prazer, menti por sacanagem, pus um piercing por vaidade, bebi por diversão, se vivi em vão. Não sei. Não sei se tudo isso, por mais supérfluos que sejam, me enriqueceram a alma ou se a envelheceram.
                E aqui, perto da minha despedida, eu fico pensando em todos os meus anos de busca incessante por prazer. Então vejo que sempre busquei aquilo que chamava de felicidade nos outros, esquecendo-me do único lugar onde poderia encontrá-la: em mim mesmo. Dei prazer a meu corpo, ao meu ego, me enganei, e agora minha alma se vai, insatisfeita com a vida que lhe foi roubada, enquanto meu velho corpo ficará aqui, para sempre, nesse mudo terreno que já conhece até demais.