sexta-feira, 9 de março de 2012

Lunar

O que há de mais fascinante na lua é o absurdo de sua existência. É sua forma redonda e brilhante iluminada por um sol que nem mais se consegue ver. É sua impassibilidade ali em cima, diante de toda essa dor aqui em baixo. Suas formas belas e crateras. Seu olhar hipnótico. O meu olhar hipnótico.
O que mais me fascina na lua é essa sua resistência, bravura, e força de vontade de ficar sempre em volta dessa raça que chamamos de humana. Sua coragem de ficar ali em cima, alvo de meteoros e radiação. Queria eu ter coragem de satélite.
O que na lua mais me fascina é essa sua certeza de vir após o sol. De sua capacidade magnífica de se apresentar para nós de diversas formas, apesar de se manter original por trás dessas suas máscaras. É sua fidelidade. Excentricidade. Dizem que a lua não é fonte de luz primária. Mas quem se importa? O que mais me fascina na lua é que ela tem um holofote próprio. Ela tem o sol, bem ali atrás da gente.


O que mais me fascina na lua é sua persistência. Sua perseverança de dar voltas a vida inteira, de estar sempre escapando do sol. O que mais me fascina é que ela me intimida e atrai minha admiração. E hipnotiza meus olhos. O que me fascina é que meus olhos iluminados pela lua refletem a lua, mas ela não me reflete.
O que mais me fascina na Lua é a minha existência. 

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Gigante Vermelha

Falem-me sobre esse órgão que bombeia dor e prazer. Dessa bola de carne e músculo cheia de emoções, desse cérebro irracional que se desenvolveu em meu peito. Falem-me quando foi que isso cresceu dentro de mim e passou a me (des)controlar. Mostrem-me de onde vêm essas explosões de ódio e amor que me destroem, gostaria de saber de onde vêm esses desejos súbitos de sorrir, matar, amar, chorar, transar, morrer, abraçar. Digam-me, por favor, se há alguma força maligna oculta controlando essa minha dor. Se há algum Deus misericordioso. Se há velas, drogas, orações, meditações ou macumba que possam me devolver meu autocontrole roubado.


            Quero alguém que me explique como foi que meu corpo se tornou um livro de poesias melancólicas e minha vida uma espécie de humor negro de mau gosto. Quero saber em que lugar do meu corpo ficam armazenadas todas essas desgraças secretadas em minha circulação e para que lugar desse universo são enviados os bons momentos de alegria.
Aliás, digam-me em que universo estou, que universo é esse, como ele funciona, onde ele está, quem eu sou, qual a razão do meu existir, qual o significado disso tudo, por que ele não me ligou.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Dias de sonho

Procurei nesses domingos inúteis, nessas tardes desgraçadas, nesses tempos perdidos, nessas memórias fajutas e nesse futuro assustado e nada encontrei. Revistei todos os rostos e línguas e corpos e corações e almas e pêlos e sorrisos e lágrimas, mas nada daquilo me ajudou. Sim, revistei minha pele, meu cérebro, meu sangue, meu pênis. Vasculhei minhas gavetas, armários, estantes, meu balcão, minha geladeira, vasculhei copos, copos, copos e garrafas vazias sem sucesso. Esquadrinhei o céu, o chão, o inferno, a minha vida – essa e a outra –, a dos outros e nada ali me serviu. Fiz listas, organizei, desorganizei, cataloguei, contei, revirei tudo. Apelei para oração, mandinga, macumba, grito, desespero, choro, sangue, bebida, sonhos, sexo, solidão, ódio e nada. Pensei em desistir.
Desisti.


Então veio, como sempre (subitamente), aquela necessidade maligna de se voltar às buscas, de voltar a procurar pelos mesmos cantos que eu já sabia que jamais ia encontrar o que queria, de procurar novos cantos para se procurar. Cantos estes cada vez mais difíceis e irreais. Ilusórios. Imaginários. Chega-se àquela hora em que nem se sabe mais o motivo dessa insistência em procurar algo que já não se tem esperanças de ser encontrado – como se toda essa busca, agora, não passasse de um reflexo, de um instinto, de uma força de hábito.
Até que descobri que eu nem ao menos sabia o que estava procurando.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Evaporação

Essa noite chorei por todos vocês. Vocês que me amaram, vocês que me rejeitaram, que rejeitei, que esqueci e vocês que eu sei que nunca existiram nem existirão. Chorei por meu coração estrangulado, pela minha língua queimada, pela minha boca lacrada, por esse meu ser condenado e por esse vão vazio deserto sombrio que me assombra. Nessa noite me enrolei em cobertores e casacos e disfarcei com tremores de frio essa dor no peito que não passa de uma carência. Tentei dormir mais cedo para não prolongar essa tragicidade melancólica, mas a única coisa que consegui fazer foi revirar túmulos e procurar palavras que não deveriam mais existir. Nessa noite, palavras de acalanto e esperança que talvez existissem não surtiriam efeito, sumiriam junto com esse vapor de lágrimas.
             Nessa noite eu quis um abraço.


sábado, 1 de outubro de 2011

Vontade

Aquela vontade transcendental de jogar tudo pelos ares num grito que te rasgue a garganta em sangue, de expressar seu ódio num isolamento de uma cabana no interior da Toscana sob queijos e vinhos e nenhuma alma humana condenada, de pegar a própria cabeça e rebentar contra a parede até que se estourem todas as mágoas pensamentos questões arrependimentos depressões desejos solidões. Aquela vontade de reescrever a vida, começar tudo de novo, esquecer tudo o que passou, e acreditar que nada daquilo se repetirá. Aquela vontade de ter esperança.
Aquela vontade de comer feijão com arroz no almoço.               
De pegar o teu pescoço e apertar e sacudir como se fosse um travesseiro de penas, que se rasgasse e voassem as penas, que sujasse tudo, que tuas veias estourassem e por ali não saísse só sangue, mas também vingança e aquele líquido viscoso e indesejado chamado arrependimento, um pedido de desculpas que irei dispensar e a minha redenção. Queria enfiar-te uma faca no meio do tronco, rasgar tua pele e arrancar tuas vísceras a procura da tua alma, para torturá-la para saciar esse meu desejo sádico e depois roubá-la e vendê-la para um qualquer que a fizesse sofrer como fizeram comigo.


Vontade de fugir desse abrigo ou prisão ou chiqueiro ou senzala ou, como costumam chamar, casa, e encontrar uma estrada que me levasse ao fim desse mundo. Uma estrada que não houvessem buracos nem caminhões nem carros, muito menos humanos transitando – esses quero longe -, uma estrada que o meio de transporte fosse um estado de transe espiritual em que não se precise de gasolina nem companhia.
Aquela vontade de jogar sal no chão para que ali não cresça mais nada, cuspir na terra e gritar impropérios ao alto para ver se o Universo compreende minha insatisfação.
Aquela vontade de que todas essas vontades fossem verdades, e não um simples desejo de encontrar aquele aconchego emocional em almas alheias.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Gozei flores

Eram vermelhas, rosas com espinhos. Com suas pétalas enrugadas e vermelhas e enroladas como um esfíncter anal e espinhos rígidos e duros e infinitos. Ficaram ali no chão a apodrecer desaparecendo no desgosto da putrefação e do descaso da natureza, que as deixou entregue aos fungos e bactérias e formigas. Olhei pra baixo e vi aquele gozo que não era flores, mas sim veneno e espinhos de desengano, sujando o chão com sua gosma fétida e incensando o quarto com seu odor desagradável.
Limpei com papel higiênico como se fosse uma vagina suja.


          Mas não consegui jogar fora, não achei o lixeiro. Deixei ali no cantinho do meu quarto junto com todos os outros lixos que não foram descartados, todos os papéis não aproveitados, todos os gozos desperdiçados. Todas as lágrimas, todas as maquiagens borradas, os catarros escorridos, as dores, os arrependimentos, os desejos e pulsos cerrados.
            Não era um gozo. Não eram flores. Era uma decepção.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Exemplar

Rostos que me trazem lembranças. De toques que me trazem suspiros. De palavras que me trazem dor. São rostos enfileirados, um atrás do outro, cada um com seu traço. Cada um com sua história. Cada um com alegrias e tristezas. Rostos diferentes que no fundo são iguais: são gozo e lágrima.


                Alguns desses rostos já sumiram: manchas brancas e negras do passado. Outros de vez em quando emergem em lembranças, em ódio ou saudade – carência. Rostos que me perseguem. Rostos que já não me seguem. Rostos que não são rostos, são máscaras, são demônios ou anjos disfarçados. Sou um rosto, mas chega de rostos.
                Saturação.
                Quero um corpo. Sem rosto.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Impulso

                O impulso é nervoso. Só age, não pensa. Treme. Não hesita. É quando aquele desejo é posto em prática. É quando meus lábios tocam os teus sem as devidas consequências medidas. É aquele coração acelerado, na garganta. É aquele frio nas mãos, o estômago embrulhado com um laço vermelho. O impulso é carência, é seca, desespero. Ou é ódio, irritação, repulsa. É amor. Ou dúvida.
                Ou seria o impulso a certeza?


                O impulso é quando não resistimos mais. E até quando podemos aguentar? Por quanto tempo podemos segurar nossos lábios, nossas mãos, nossas gargantas para nós mesmos? Nossa alma. Até quanto tempo conseguimos mentir para nós mesmos, para os outros? Por quanto tempo aguentamos esse fluxo turbulento de pensamentos até que, finalmente, um impulso paralise o tempo e decida o nosso futuro? Que se ignorem os arrependimentos e felicidades.
                Só quero saber por quanto tempo aguentarei até que esse impulso me jogue sobre você.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Chuva

                Encolhi-me na chuva. Encolhi-me nos trovões. Não sei se eram trovões de nuvens se chocando ou de minha alma gritando. Nem se aquele barulho era de chuva caindo lá fora, atrás da janela empoeirada que me fecha nesse quarto frio e vazio, ou se era apenas minha alma em prantos. Não há música de amor. Só o silêncio do choro agonizante e os urros dos céus, em forma de trovões que fazem o corpo tremer – ainda mais.


               Passei essa noite em claro, no escuro. Não importa se os olhos estavam fechados ou abertos, só se via trevas. E hoje do mesmo jeito. Nesse novo dia que traz marcas da noite passada. As lágrimas indigestas que escorrem pela janela; o céu negro em escândalo e luto pelo amor; aquela sensação cinzenta. Nessa chuva é assim: não há horizonte. O futuro, a esperança, as chances de que algum dia se veja o brilho do Sol, está tudo ofuscado por uma nuvem densa que parece não planejar ir embora. Aquele hóspede incômodo.
              Então eu percebo que aquele barulho não era de água caindo no chão. Eram aplausos. Aplausos das árvores em reconhecimento de minha vitória.
              Eu ganhei.
              Consegui ser mais deprimente que essa maldita chuva de outono.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Os pêlos

                Não sei se isso é importante. Não sei se foi mero acaso, acidente ou um ato deliberado. Não sei se foi premeditado ou consensual – ou só sensual. Não sei se minhas dúvidas são na verdade desejos, esperanças.
                Mas eu tenho certeza que aquela conversa não importou. Todas aquelas palavras e olhares trocados, os sorrisos, nada disso foi importante. Tudo isso se ofusca diante aquele instante. Aqueles milésimos de segundos em que nossos braços ficaram tão próximos que... As pontas de nossos pêlos se tocaram. E aquele silêncio que durou todos os milésimos de segundos do nosso pequeno contato, segundos que pareciam horas, torturado por meus pensamentos – o que será que tu pensavas? Será que estava sentindo também? –. Aquele arrepio, aquela sensação de proximidade foi quase um beijo. Poderia ser um beijo. Poderia ter sido mais. Os pêlos se aproximando, mais e mais, roçando, esmagando um ao outro até chegar ao toque da epiderme. O ápice, o encontro máximo de dois corpos: o toque.


                Aquele encontro mínimo, meus pêlos roçando nos seus, aquele breve instante quase que insignificante capaz de despertar todos os sentimentos e desejos reprimidos, aquela vontade de percorrer todo o seu braço – não só aquele pequeno ponto de contato que tivemos – e explorar aquelas áreas ainda não reveladas. A vontade de, na próxima vez, encostar a minha perna na tua, como que por acidente, para você saber que estou ali, te desejando, desejando que tu me desejes.
                A vontade de que, na próxima vez, não seja só os pêlos.